“Aceitaria sair comigo?”. Não, obrigada. “Gauchinha de merda.”
Não é não? “Kkkkkkkk.” Não para stalkers virtuais.
Carolina Cascaes, 33, queria muito trabalhar como atendente num camarote do Carnaval paulistano de 2018. Era promotora de eventos, modelo gaúcha, recém-chegada à cidade. Tinha filha, marido. Explicou tudo isso para Junior, autor do convite acima. Em vão.
Era dele o WhatsApp no anúncio da seleção. Carol mandou sua foto, uma praxe no ofício, e de cara ele tentou emplacar um encontro. “Fui tentando me desvencilhar elegantemente sem perder a vaga. Até que começou a ficar muito pesado, começou com algumas grosserias.”
A conversa está lá, registrada sobre o desenho de um unicórnio fazendo cocô de arco-íris, a tela de fundo que ela usa no aplicativo. Junior primeiro diz que o parceiro de Carol não precisa saber se os dois saírem, depois pede: “Manda uma foto pra mim, de biquíni ou lingerie, confia em mim”.
Quando a modelo responde que não vai se submeter àquilo só para conseguir emprego, ele fica agressivo: “Vai se achando filha. Do seu pacote já comi muitas kkkk”.
Conta vantagem sobre ganhar R$ 100 mil por mês, “até mais, nunca contei, só sei o que entrego à Receita Federal”. Promete pôr o nome dela na lista maldita para 450 empresas cadastradas.
Carol lamenta que o papo tenha tomado aquele rumo só porque ela “não quis transar” por um trabalho. Decide alertar colegas. “Achei que fosse golpe só pra ver menina bonita, printei tudo e postei no grupo de modelos que a gente tinha, para avisar que era vaga fake. Eu não imaginava o que viria.” As cenas do próximo capítulo ilustram um tipo de crime só recentemente reconhecido pelo Estado brasileiro: a perseguição, popularizada pela expressão em inglês, stalking.
Uma lei sancionada em março estipulou até três anos de prisão a quem “perseguir, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade”.
O texto criou um tipo penal que não existia quando os caminhos virtuais de Carol e Junior se cruzaram, três anos atrás. Quando a legislação deixa claro que o acossamento pode acontecer “por qualquer meio”, físico ou digital, “já reflete os tempos em que a gente vive”, diz a antropóloga Beatriz Accioly Lins.
A internet facilitou e muito o trabalho dos stalkers, afinal. Autora de “Caiu na Net: Nudes e Exposição de Mulheres na Internet”, Lins conta que acompanhou mulheres em situações que não se enquadravam nos tipos penais mais usados, como lesão corporal.
Daí que elas chegavam a um órgão público e “relatavam histórias em que eram o tempo inteiro perseguidas, não tinham paz, mas não havia ofensa, ameaça”, afirma a antropóloga. “Então ficavam no limbo jurídico.”
Depois que Carol expôs nas redes o assédio que sofreu, Junior deixou de lado o “kkkkk” e partiu para o ataque. “Naquela noite ele me ligou 150 vezes, algumas de números desconhecidos. Ele ameaçou meu marido, minha filha. Aí começaram as ameaças de morte, perseguição. Sempre virtualmente.”
Carol conta que o assediador postou telefone e foto dela numa “página do Facebook de putaria”, na qual “meninas se candidatavam para prostituição”.
Não foi só sua saúde mental que foi para o espaço. As intimidações a levaram a fechar seu perfil profissional no Instagram, vitrine para potenciais contratantes. Segundo a modelo, Junior também se passou por policial. “Disse que ia dar um tiro na minha cara. Foram meses e meses de inferno.”
Carol nunca tinha visto esse stalker na vida. Samia Lisboa, 45, era casada com o dela.
A união se prolongou por duas décadas, mesmo depois de ele a agredir “a ponto de quebrar os dentes”. Na época, estava grávida pela segunda vez.
“Foi por causa de R$ 11.” Tinha ido fazer um ultrassom. Bateu fome. Com o cartão do marido, comprou algo para comer. “Ele achou aquilo absurdo: ‘Por que não veio comer em casa?’.”
“Ela poderia ter morrido na minha barriga”, diz sobre a filha de 15 anos, que acabou de sair para uma academia perto da casa onde elas moram em Moema (zona sul de São Paulo).
Os anos foram passando, o marido enriqueceu, e refeições em restaurantes chiques viraram um “cala-boca” após ele se descontrolar, junto com viagens e carros importados (ela gosta de Mercedes).
Estava bem-servida no cardápio de violências contra a mulher: psicológica, patrimonial, física. “Vamos dizer que, de humilhação, degustei de todas. Fui chamada de lixo, de porcaria”, relata. “E ele gostava muito do meu pescoço, gostava de enforcar.”
Samia desculpava sempre. “Quando perdoei, perdoei por amor.” Mas as oscilações de humor do parceiro não pararam. “As formas de falar que eu deveria morrer começaram a aumentar. Até um copo de vinho, se ele oferecesse, eu já ficava assim: o que que tem dentro?”
O dia do “basta” chegou. Ela narra como se arrastou até uma porta de correr para se livrar do marido, que tentou estrangulá-la após uma discussão no escritório dele.
Com ajuda do Justiceiras, rede de proteção a mulheres agredidas, Samia fez boletim de ocorrência e conseguiu uma medida protetiva. Fisicamente, o agora ex-marido não pode chegar perto. Veio então o cerco virtual.
A coisa começou a ficar estranha de dois anos para cá, após o término. Ele nunca teve redes sociais, mas pedia que funcionários fizessem perfis para segui-la, segundo sua ex.
De repente, muitas contas masculinas passaram a abordá-la. Esses homens conheciam seus gostos. Ela mostra sua página no Facebook -quase mil solicitações de amizade pendentes.
Samia recebe a toda hora mensagens como “confesso que não pude me conter com tamanha beleza”. Até pornografias no WhatsApp. “Eram pessoas me chamando de ‘meu amor’, aí mandavam vídeo pornográfico.” Seu número de telefone também foi parar numa rede social de relacionamento.
Ela sabe que a internet é um manancial de doidos e golpes. Mas o “timing” daquilo tudo, somado com o que ela ouviu de pessoas que conhecem o ex, lhe dão a certeza de que ele tem um dedo nisso.
Samia também desconfia que ele tenha implantado dispositivos clandestinos de monitoramento. “Eu falava coisas dentro do carro e da casa que ele vinha questionar. E eu: ‘Ué, como ele está sabendo?’.”
Para Samia, o pai de seus filhos espalha ratoeiras virtuais tanto para vigiá-la quanto para jogar na sua cara que ela é saidinha demais com outros caras. “Há a necessidade de provar que eu era uma traidora, uma pessoa de má índole, uma vagabunda. Mas quando o homem prova que a mulher é vagabunda, prova que ele é outra coisa, né? Fica ruim pro lado dele.”
Muito do cyberstalking tem a ver com ameaçar expor intimidades da mulher, como um nude enviado por ela ou o vídeo de uma relação sexual gravada sem seu conhecimento. Casos como o de Samia, contudo, escancaram como a perseguição ataca em várias frentes, sempre com um denominador comum.
“A tecnologia é mais um meio que o homem usa para silenciar a mulher, ter alguma forma de continuar mantendo domínio sobre ela”, afirma Juliana Cunha, diretora da Safernet, ONG que acolhe denúncias de crimes online.
Como qualquer outra violência contra a mulher, “tem muito a ver com reafirmar o poder que ele tem contra a mulher, levá-la a ter medo de você”. Em suma: “Fazer de tudo para fazer da vida dela um inferno”.
Cris Camargo, 49, que o diga. Seu pecado foi desenhar sobre um machismo típico em feiras de quadrinhos.
A tirinha mostrava um rapaz parando para conferir o trabalho de um quadrinista, passando batido pelos próximos dois stands, de mulheres, e voltando a se interessar pelo seguinte, outro homem. A legenda: “Ser artista mulher é ter sua mesa ignorada por machistas nos eventos”.
Quando a autora da HQ “Ser Artista Mulher É…” decidiu reproduzir o que acontecia com ela e colegas, os haters não perdoaram. Uma “feminazi chata pra caralho” como ela só não era reconhecida por “ser fraca e copiar os traços do Mauricio de Sousa”, disse um.
“Ninguém tem culpa que a arte dela é uma merda que só atrai militante feminista”, veio outro. “Bater uns bolos talvez resolva a doença mental que ela tem.”
E como esquecer deste aqui? “Nesses eventos só tem virjão. Ter uma ppk te coloca em vantagem a qualquer desenhista homem do local. Se ainda assim não fez sucesso, é porque desenha mal pra caramba mesmo.”
“Os caras vão me atacar pra provar que não existe preconceito”, afirma Cris. “Chega a ser hilário.”
Se ficasse só na artilharia rasteira das redes, vá lá. Mas não. A desenhista chegou a receber o que interpretou como ameaça velada de morte. “O cara dizendo que eu não devia mexer com esses assuntos, de criticar ações masculinas, porque eu poderia me arrepender, as pessoas sabiam onde me encontrar.”
Boa parte da violência de gênero que Cris sofre nas redes é crime de perseguição, diz sua advogada, Raphaella Reis, da DeFEMde (Rede Feminista de Juristas). O problema é que nem sempre a Justiça entende assim.
Quando um perfil forjou fake news sobre ela, que a Folha não reproduzirá para não dar corda a elas, Cris resolveu processar. O Judiciário paulista entendeu, em duas instâncias, que não caberia nenhum tipo de reparação.
Um trecho da sentença: “Ora, se ela estivesse de fato tão incomodada com as agressões verbais e, por conseguinte, com a sua reputação e com a repercussão que as acusações contra ela pudessem causar em sua vida, não teria se dado ao trabalho de responder às ofensas”.
A certa altura, um dos juízes do colegiado interrompeu a advogada. “Eu falando, ele rindo. Disse que o Judiciário não era pra frescura de internet”, afirma Reis.
“É importante frisar que 76% das vítimas de feminicídio foram perseguidas, pois o homem autor de violência, ao perceber que não consegue controlar a vida de uma mulher, prefere matar”, diz a advogada Sueli Amoedo, do Justiceiras.
O dado é do americano Stalking Resource Center, que inclui atitudes persecutórias presenciais e online.
Samia já teve medo de morrer. Com ordem judicial que impede o ex de chegar perto, a perseguição digital virou uma nova arma de silenciamento.
Ela não se cala. Mostra no celular os perfis que inundam suas redes para importuná-la, muitos deles fake. “Esses canalhas deveriam virar alimento de sucuri.”
DENUNCIE
Vítimas ou testemunhas podem denunciar eventos de violência contra a mulher pelo Ligue 180 (basta teclar 180 de qualquer telefone fixo ou celular). O serviço está disponível 24 horas por dia, incluindo sábados, domingos e feriados.
A ligação é gratuita.
Por Anna Virginia Balloussier e Mathilde Missioneiro/FOLHAPRESS
Foto: Divulgação
Redação por Bernardo Andrade