Games usam cinemáticas, mais conhecidas como “cut scenes”, para contar histórias. Durante sua exibição, o jogo tira o controle da mão do jogador, que passa à posição de espectador. É o “momento filminho”.
A série de animação “Arcane”, baseada no jogo “League of Legends” -o famoso “LoL”-, é um “momento filmão”.
Adota a linguagem que funciona com o game em uma produção de nove episódios. Um movimento desejado há anos pelos jogadores.
Quem está à frente do projeto é o estúdio francês Fortiche, que tem em seu portfólio clipes de “LoL” e da banda Gorillaz, representada por desenhos animados.
A demanda dos jogadores tinha razão. “Arcane” entrega um espetáculo gráfico capaz de deslumbrar até quem nunca ouviu falar do game, referência em esporte eletrônico.
Os episódios são recheados de efeitos, com filtros, cores neon, desfoques, cortes rápidos. A polícia vai perseguir os heróis? É hora de acionar lâmpadas de luz negra e aproveitar o clima de rave para dar no pé.
O enredo dá as justificativas para o desfile de estilos -num flashback, por exemplo. Nesse sentido lembra o longa “Homem-Aranha no Aranhaverso”, vencedor do Oscar de animação em 2019.
O ritmo de “Arcane”, porém, não é tão frenético. Com as horas a mais da série, há espaço para silêncios e cenas de puro deleite, sem compromisso funcional com o avançar da trama.
Em essência, “Arcane” é uma computação gráfica com texturas que remetem à animação tradicional 2D. Uma descrição que bate com games como “Call of the Sea”, “Sea of Thieves” e “Dishonored”.
“Arcane” amarra elementos de outros produtos pop. Vai dos laboratórios da Marvel, onde experimentos são fonte de problemas e poderes, a lutas com enquadramento de anime, passando pela incerteza de quem vai morrer ou viver de “Game of Thrones”.
Traz de único metáforas de temas à flor da pele do contemporâneo. Há tensões políticas, econômicas, bullying, drogas, doenças mentais, segurança pública. Transita por esses assuntos com destemor, sem moralismo. “Arcane” é mais que um rostinho bonito a florescer no catálogo da Netflix.
A série apresenta a origem de alguns campeões -como os mais de 150 personagens selecionáveis de “LoL” são chamados. O protagonismo é das irmãs Vi e Powder. Esta se tornará Jinx, uma espécie de Arlequina, da DC Comics, turbinada com porte de armas pesadas.
“Arcane” se preocupa em atender uma audiência massiva. As cenas não adotam uma linguagem destoante para sublinhar referências de “LoL”, nem se preocupam em responder perguntas dos fãs mais obcecados, erro reiteradamente observado nos mais recentes filmes de “Star Wars”.
O foco de “Arcane” são as personagens. Elas conduzem o espectador por uma fantasia de retrofuturismo da primeira revolução industrial, salpicada com magia e seres fantásticos. Vi e Powder foram criadas nas vielas da pobre região de Zaun.
Lá os habitantes implantam armas no corpo em meio a um ambiente de hedonismo e degradação social. É cyberpunk sem ser digital. Parece com as favelas de “Final Fantasy VII” ou de “Alita: Anjo de Batalha”.
Se Zaun equivale a um distrito de “Jogos Vorazes”, a capital é a rica Piltover. O outro lado da ponte se encaixa no subgênero steampunk, com ares vitorianos e utopia, progressista a qualquer custo.
Um furto da gangue de Vi em Piltover desencadeia a tensão latente entre as duas zonas. Powder, vista como o pé-frio da turma -jinx, em inglês-, embolsa misteriosas pedras explosivas que eram parte de uma pesquisa secreta.
Os primeiros três episódios introduzem esse cenário e são os mais simples, apelando a alguns estereótipos. Há cupcakes no caminho da pessoa obesa? Ele vai aproveitar para devorar um.
O vilão é o sujeito com cicatrizes e uma deformação no olho, enquanto o barman é um paizão, do bem até na hora de dar bronca. Um maniqueísmo de fazer J.R.R. Tolkien corar.
Com as bases estabelecidas, os episódios seguintes bagunçam essa percepção. Em vez do cenário, as surpresas passam a vir das pessoas, mostrando facetas inesperadas diante de dilemas.
“Arcane” chega ao público redonda, sem arestas. É fruto de mais de uma década de desenvolvimento narrativo da Riot Games, criadora de “LoL”. Entre os elementos que mantêm o jogo relevante está o entendimento das vontades da comunidade de jogadores.
“Arcane” é um firme começo para um público novo e um presente para quem entende que Jinx é uma ADC de bot lane sem skill de fuga e está tudo bem.
ARCANE
Onde Disponível na Netflix
Classificação 14 anos
Elenco Hailee Steinfeld, Ella Purnell, Kevin Alejandro
Produção EUA/França, 2021
Criação Alex Yee e Christian Linke
Avaliação ótimo
Por João Varella/FOLHAPRESS
Foto: Divulgação
Redação por Bernardo Andrade