Quando Shuggie Bain, ainda criança, se aproxima da cintura da mãe para reclamar da casa para onde haviam acabado de se mudar, num conjunto habitacional que fedia a “repolho e bateria”, as vizinhas que fofocam perto dela reagem com deboche.
“Olha só isso aí. Liberace está chegando!”, berra uma delas, e todas ao redor urram de gargalhar com a referência ao músico espalhafatoso. “Espero que o piano caiba na sala”, brinca outra.
A mãe, Agnes, fecha a cara e sai de perto levando o filho, que sofre com piadas homofóbicas desde muito antes de entender que é gay. Os comentários, já violentos, prenunciam agressões ainda mais duras de que o garoto será alvo, enquanto sua mãe pena para pôr comida na mesa.
“Esse é um lado bastante negligenciado da história queer”, afirma o escocês Douglas Stuart, que venceu o Booker, um dos mais prestigiosos prêmios da literatura em inglês, por esta estreia literária com “A História de Shuggie Bain”.
“Muito do cânone da literatura gay vem da classe média, um lugar com mobilidade social, acesso a educação e a ambientes urbanos. Quando você sente que não pertence a um lugar e não consegue de jeito nenhum se mover dali, há uma tensão real”, afirma o escritor em entrevista por vídeo.
“O arco da conquista dos direitos queer foi diferente para as classes trabalhadoras. Foi mais devagar e violento. Muita gente se sentia de fora da agenda liberal.”
Stuart está numa posição confortável para fazer essa análise, afinal a história que narra em “Shuggie Bain” bebe muito da sua própria.
O autor cresceu numa família miserável, sofreu com um pai que o abandonara e uma mãe que sucumbia cada vez mais ao alcoolismo, doença que a vitimou quando o futuro escritor tinha 16 anos.
O enredo do romance, centrado na relação protetiva do menino Shuggie com uma mãe que se afunda cada vez mais no vício, tinha muito do autor tentando dar sentido à própria vida. Foi um processo terapêutico no qual ele diz ter aprendido a “se recusar a sentir qualquer vergonha e também a manter isso no escuro”.
Foi um caminho tortuoso. A formação de Stuart foi em manufatura têxtil –“algo que podia servir para um emprego industrial, já que trabalho criativo não era exatamente encorajado de onde eu vinha”.
Trabalhou para marcas como Calvin Klein e Ralph Lauren até chegar a um cargo de direção na Banana Republic, época em que começou a rascunhar o que se tornaria o romance.
“Eu sempre me considerei um contador de histórias, mas fazia isso sempre às margens do meu emprego”, lembra.
“Shuggie Bain” demorou mais de uma década para tomar forma, conforme Stuart misturava lembranças e ficção. A edição de 528 páginas que chega ao Brasil, segundo ele, é a versão curta. “Meu plano inicial tinha 1.800 páginas”, afirma, sorrindo.
Faz algum sentido quando se compreende que as maiores inspirações do escritor foram os grandes clássicos da literatura britânica, como Charles Dickens e James Joyce.
“Sempre gostei mais de ser engolido por livros imersivos, com um coro de personagens, e achei que usar esse mesmo tratamento detalhista conferia dignidade ao mundo que eu procurava retratar.”
O interesse dele, contudo, está em personagens bem diferentes. Mesmo que o cânone tenha se atentado fartamente à classe operária, era raro que os protagonistas não fossem homens heterossexuais. “E os gays sempre estiveram lá, mas invisíveis”, diz. “Quando você é queer nesse tipo de ambiente, invisível é o melhor que você consegue ser.”
Na literatura de Stuart, há a tensão represada nas mulheres que ficam em casa, dependentes de maridos inconstantes e violentos –e o romance não mede palavras para denunciar o esgarçamento das redes de proteção social que foi uma das marcas do thatcherismo, naqueles anos 1980.
O escocês afirma que, desde então, a situação dos trabalhadores britânicos piorou e melhorou.
“As coisas estão piores porque agora há a dissolução da identidade e da solidariedade entre as pessoas dessa classe. Hoje até os pobres se pensam como indivíduos, Thatcher teve bastante sucesso em acabar com os sindicatos. E as coisas estão melhores porque as oportunidades em muitas cidades industriais renasceram desde aquele momento.”
Em meio a todos esses indivíduos, o interesse de Stuart sempre está nos que fogem à masculinidade padrão. Há Catherine, a filha que busca de qualquer jeito escapar da armadilha de um destino tão miserável quanto o da mãe; Leek, o filho mais velho angustiado com a serventia de seu talento para a arte; e Shuggie, que tem a divergência mais radical da heteronormatividade.
“Crescer em Glasgow nos anos 1980 era lidar inevitavelmente com o tema do abandono parental. Eu pensei muito sobre como era fácil para alguns homens simplesmente levantar e começar uma nova vida em outro lugar. E como o fardo era sempre carregado pelas crianças e mulheres deixadas para trás.”
Assim, a história essencial num livro repleto de cenas de desamparo, carência e humilhação é a de um amor perpétuo –o de um filho por sua mãe, não importa que sua situação piore de forma trágica e vertiginosa.
“O amor não significa muita coisa a menos que seja testado”, afirma Stuart. “Há um tipo de amor incondicional que apenas as crianças têm por seus pais falhos. É um pouco milagroso. A razão pela qual fiz um livro tão sombrio é que eu queria que as coisas reluzentes tivessem um brilho mais intenso.”
A HISTÓRIA DE SHUGGIE BAIN
Preço R$ 79,90 (528 págs.); R$ 54,90 (ebook)
Autor Douglas Stuart
Editora Intrínseca
Tradução Débora Landsberg
Por Walter Porto
Foto: Divulgação
Redação por Bernardo Andrade