É preciso coragem para defender J. K. Rowling, que nos últimos tempos se divorciou de parte da legião de fãs de “Harry Potter” por declarações vistas como transfóbicas.
Embora a autora não pareça ter sofrido impactos financeiros, a ponto de ter sido a mais vendida do Brasil no ano retrasado, seu cancelamento tem rendido até ameaças de morte.
Para os que não vivem no Twitter, Rowling escreveu há três anos que, diante da propagação de políticas públicas que facilitam o acesso a cirurgias de redesignação sexual e adoção de nomes sociais, estava preocupada com a chance de homens se fingirem de mulheres trans para abusarem sexualmente de mulheres cisgênero em banheiros.
O posicionamento vira e mexe volta à pauta das redes, muitas vezes com a própria escritora pondo lenha na fogueira –caso, por exemplo, de quando ela divulgou uma loja que comercializa camisetas estampadas por frases como “mulheres trans são homens”.
Este não é um texto para defender o que Rowling pensa sobre identidade de gênero –até porque, nisto, o autor discorda dela–, mas sobre o retrato que ela propõe da homossexualidade de Dumbledore, que volta à tona com a estreia, nesta quinta-feira, de “Animais Fantásticos: Os Segredos de Dumbledore”, o terceiro volume da franquia derivada de “Harry Potter”.
Corre nas redes sociais a suposição de que Rowling um dia acordou e publicou no Twitter que Dumbledore era gay, com a intenção de “queerbaiting”. É o nome dado à prática de lançar uma isca para agradar a comunidade LGBTQIA+ sem entregar nada concreto a fim apenas de se promover e, em última instância, lucrar.
Mas não foi assim. A revelação de Rowling se deu quando a sigla LGBTQIA+ ainda era chamada de GLS –gays, lésbicas e simpatizantes–, e o Twitter, principal palco do imbróglio, mal tinha sido criado.
Era outubro de 2007. A autora estava em turnê pelos Estados Unidos para lançar “As Relíquias da Morte”. Numa sessão de autógrafos no Carnegie Hall, em Nova York, uma leitora perguntou se “Dumbledore, que acreditava no poder do amor, já tinha se apaixonado alguma vez”.
Rowling respondeu que ele tinha se apaixonado por Grindelwald, o grande bruxo das trevas que precedeu Voldemort, o vilão de “Harry Potter”. A paixão o teria feito cair na lorota de que os bruxos, superiores, deveriam subjugar os “trouxas” –isto é, os não-mágicos–, numa referência ao nazismo.
“Ele ficou cego por amor”, disse a autora, e decidiu se tornar celibatário. Ela acrescentou que uma vez precisou corrigir o roteirista de “Harry Potter” e dizer que não fazia sentido o diálogo que ele tinha criado, em que Dumbledore contava a Harry sobre uma garota do passado.
A plateia foi então tomada por um silêncio sepulcral. Até que, de repente, explodiu em aplausos, ao que a escritora respondeu que “se soubesse que os faria tão felizes, teria dito antes”.
A cena é de uma inocência difícil de acreditar numa época em que produções como o revival de “Sex and the City” forçam a barra para corrigir a falta de representatividade do passado e criam personagens cuja personalidade se resume a ser gay, lésbica, bissexual –ou, no caso do seriado, não-binário.
Os livros de Rowling são criticados por não terem mostrado a homossexualidade de Dumbledore, mas a crítica é anacrônica.
É inquestionável que a sexualidade molda a trajetória de um indivíduo, mas “Harry Potter”, muito mais interessado no amor entre mãe e filho, entre irmãos e, principalmente, entre amigos, nunca deu ênfase ao casamento ou ao namoro de seus personagens, com exceção dos que, na linha narrativa do presente, faziam a narrativa avançar.
O leitor nunca é apresentado, por exemplo, ao trágico romance da professora McGonagall, também revelado por Rowling ao responder à pergunta de um fã numa sessão de autógrafos. Pelo contrário. Uma das maiores reclamações dos leitores é a falta de construção do relacionamento de Harry com Gina, ou seja, do protagonista com a irmã do melhor amigo, Rony.
À parte o estilo da narrativa, é preciso lembrar que, se por um lado a plateia no Carnegie Hall aplaudiu Rowling, a revelação motivou enxurradas de comentários homofóbicos nos portais de notícia e até entre os fãs.
Vale lembrar que era uma época em que dava para contar nos dedos das mãos as celebridades que admitiam abertamente fazer parte da comunidade LGBTQIA+.
Na televisão brasileira, um beijo gay tinha acabado de ser censurado em “América”, da Globo, e figuras como Crô ou Félix, que reforçavam estereótipos associados à comunidade gay, nem sequer existiam em histórias vistas pelo grande público.
E que Rowling só conseguiu convencer uma editora a publicar o seu livro –sete anos depois de escrevê-lo, e depois de 12 recusas– após aceitar pegar emprestado o nome de sua avó paterna, Kathleen, para criar seu nome artístico. O motivo? Meninos não leriam um livro de fantasia escrito por uma mulher, dizia a casa que enfim lhe abriu as portas.
É difícil esperar que uma autora forçada a fingir ser um homem conseguiria abordar de maneira explícita a homossexualidade de um personagem, ainda que ela fosse essencial à narrativa.
Com o passar dos anos, a fama e o dinheiro certamente trouxeram liberdade criativa a Rowling, mas em 2007, ano de publicação do último “Harry Potter”, as portas do armário ainda estavam lacradas no showbiz.
Em alguns locais, estão até hoje. O novo “Animais Fantásticos” teve duas de suas cenas com referência à homossexualidade censurada na China.
Houve quem acusasse Rowling de ter baixado a cabeça para a censura, quando a decisão certamente estava nas mãos do estúdio, que nunca abriria mão de pôr o filme em cartaz num país que é o maior mercado de cinema do mundo depois dos Estados Unidos e responde por um terço da bilheteria dos filmes anteriores.
Talvez seja por isso que, no segundo “Animais Fantásticos”, a questão gay não era retratada de maneira explícita, mas mencionada apenas numa cena em que Dumbledore diz que ele e Grindelwald eram “mais do que irmãos” ao revelar ter feito um pacto de sangue com o bruxo.
É difícil tirar a razão de quem se desagradou, mas é injusto atribuir o descontentamento exclusivamente a Rowling no mercado regido por bilhões que é o do cinema.
Prefiro acreditar que, há não muito tempo, Rowling ensinou a uma legião de crianças e jovens que o amor é a magia mais poderosa que existe e que, como Harry, ninguém precisaria viver dentro do armário.
Por Pedro Martins/FOLHAPRESS
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Redação por Bernardo Andrade