A PRF (Polícia Rodoviária Federal) ampliou a justificativa dada para atuar junto com a Polícia Militar do Rio de Janeiro na operação na favela Vila Cruzeiro, na zona norte da capital fluminense, em que ao menos 23 pessoas morreram.
Durante os preparativos internos da operação, a justificativa era apenas o cumprimento de mandado de prisão de traficantes do Comando Vermelho, facção criminosa que atua na favela. Após as mortes, a corporação passou a mencionar também a atuação do grupo em crimes em rodovias.
A atuação dos agentes rodoviários federais está na mira do Ministério Público Federal. O procurador Eduardo Benones instaurou procedimento para apurar as circunstâncias da atuação da corporação nesta e em outras operações na cidade este ano.
A PRF atuou na operação coordenada pela Polícia Militar que culminou com a morte de ao menos 23 pessoas, a segunda mais letal da história do estado. O número de vítimas da ação foi corrigido nesta quinta-feira (26) pela Polícia Civil.
Antes, hospitais informaram que 26 tinham morrido em decorrência da operação. Para a polícia, três dessas mortes não têm ligação com a ação e, por isso, não devem entrar no cálculo.
Esta é ao menos a terceira operação na qual a PRF atua junto com o Bope, a tropa de elite da PM fluminense, este ano. Em fevereiro, as duas corporações atuaram na mesma Vila Cruzeiro, em ação que gerou oito mortes. Em abril, foram seis mortes no Chapadão.
Documento interno da PRF, usado para autorizar o emprego dos agentes na operação desta semana, menciona apenas o pedido de apoio do Bope para o cumprimento de mandados de prisão de dois traficantes apontados como líderes do Comando Vermelho, facção criminosa que atua na favela.
“Essa ação integrada é fruto de um longo trabalho de articulação institucional, inclusive com a troca de informações sensíveis entre os órgãos envolvidos”, afirma ofício de Alexandre Souza e Silva, chefe do setor de comando de operações especiais da PRF enviado ao superintendente da corporação no Rio de Janeiro, Rômulo Ferreira da Silva.
O texto afirma que a PRF respeitará os limites de suas atribuições, regidas pela Constituição, o Código Nacional de Trânsito, dois decretos e uma portaria.
A Constituição afirma que a PRF “destina-se ao patrulhamento ostensivo das rodovias federais”. O código descreve a competência da corporação nas estradas federais.
Uma das competências descritas em decreto que regulamenta a atuação da PRF é “colaborar e atuar na prevenção e repressão aos crimes contra a vida, os costumes, o patrimônio, a ecologia, o meio ambiente, os furtos e roubos de veículos e bens, o tráfico de entorpecentes e drogas afins, o contrabando, o descaminho e os demais crimes previstos em leis”.
Outro decreto, editado no primeiro dia de gestão do presidente Jair Bolsonaro (PL), autoriza a Diretoria de Operações da PRF a fazer o “auxílio às demais instituições de segurança pública na prevenção e no enfrentamento ao crime, no âmbito de competência da Polícia Rodoviária Federal”.
Uma portaria editada no ano passado estabeleceu as diretrizes para a realização de operações conjuntas com outros órgãos do Sistema Único de Segurança Pública. Ele autoriza a PRF a “ingressar nos locais alvos de mandado de busca e apreensão, mediante previsão em decisão judicial”, desde que respeitado as competências previstas na legislação.
Em nota oficial após a operação, a PRF afirmou que, além do cumprimento dos mandados de prisão, “a facção criminosa que atua na referida comunidade é responsável por cerca de 80% dos crimes cometidos em todo estado do Rio, inclusive nas rodovias federais”.
“A Polícia Rodoviária Federal, como um dos órgãos constitucionais responsáveis pela segurança pública no Brasil, deve, sempre, atuar em prol do interesse público. Dessa forma, o combate ao crime organizado é interesse de todas as entidades federativas, inclusive, da União. […] A Polícia Rodoviária Federal, sempre que demandada, atuará em apoio a outras forças de segurança, respeitando os princípios constitucionais que regem a atividade policial”, afirma a nota.
Eduardo Benones, procurador que vai apurar a atuação da PRF, afirmou que as justificativas para o emprego da PRF têm sido genéricas.
“A justificativa geralmente é sempre a história de apoio operacional. O objeto da nossa investigação é qual fundamento fático se encaixa na função específica da PRF. Pelo que eu saiba, não há viela federal na Vila Cruzeiro”, disse o procurador.
Registros de ocorrência da Divisão de Homicídios mostram que os agentes da PRF não se limitaram ao entorno da operação. Eles participaram da principal troca de tiros em que ao menos dez pessoas morreram, próximo à Pedra do Sapo.
O sociólogo Luiz Flávio Sapori, especializado em segurança pública, afirma que a competência da PRF se limita ao patrulhamento das rodovias federais, como descrito na Constituição.
“Ela pode, e deve, produzir um trabalho de inteligência para esse patrulhamento e, eventualmente, compartilhar as informações com outros órgãos de segurança. Mas não é atribuição dela esse enfrentamento repressivo focalizado para a prisão de criminosos”, disse ele.
Para Sapori, as normas posteriores à Constituição não podem ampliar a competência definida da PRF.
“É como se a PRF estivesse fazendo uma interpretação muito peculiar de suas atribuições.”
Por Ítalo Nogueira/FOLHAPRESS
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Redação por Bernardo Andrade